ITAPECURU: LÁGRIMAS E LENDAS (Jocimar Pereira)
Sr. Juvenal, um pescador, caçador e
lavrador que hoje, com mais de sessenta anos, ainda morando na mesma casa à
beira do Rio Itapecuru, no Município de Coroatá, Maranhão, onde nascera,
vivendo da aposentadoria, a que tivera direito por ser associado da Colônia de
Pescadores, com uma saúde invejável e uma facilidade de relatar em detalhes
todos os momentos de sua bem vivida vida, através da lembrança viva na memória
conta, principalmente aos netos, a história de suas aventuras, a maioria delas
sobre uma canoa. Homem simples, estatura média, corpo fino e moreno, queimado
pelo sol diário, na luta pelo sustento da
família, com uma longa história pra contar e encantar quem ouve. Levantava
sempre muito cedo para cuidar da roça que ficava rio acima, uma hora e meia de
remadas sem direito a uma parada para descanso, era o tempo que ele levava de
sua modesta casa até o seu destino rotineiro. Criou cinco filhos às custas do
vai e vem diário em sua canoa sobre o Rio Itapecuru, além do inseparável remo,
sem o qual jamais movimentaria sua canoa, levava uma espingarda, tarrafa,
facão, foice, enxada, um pouco de alimento, basicamente farinha à vontade e um
pacote de sal. Sempre tinha consigo muito sal, porque às vezes ainda na sua
ida, pela manhã, era possível abater alguma caça que aparecia à beira do rio e,
quando isso acontecia, salgava logo a carne para que não estragasse. Muito
consciente e respeitoso com a natureza, só matava algum animal quando havia
necessidade, jamais abatia algum se houvesse alimento suficiente em casa. Homem
de fé guardava os dias santos e sempre abria mão de alguns afazeres para ir à
igreja. Agricultor experiente conhecia todas as fases da lua, sabia o tempo
exato de plantar para que a colheita fosse farta, conhecia o tempo de fartura e
o tempo de inverno fraco, tinha o entendimento da neutralidade do sábado para a
plantação ou mudança de uma planta. Homem de nenhuma ou quase nenhuma leitura,
mas, com entendimento de poucos doutores. Ao redor de sua casa sempre conserva
uma pequena plantação, onde tem o quiabo, maxixe, cuxá, coentro, cebolinha e
pimenta, que sua esposa vende em uma banquinha na porta de casa, renda que
ajuda no pagamento das contas de energia e água.
A água do rio não serve mais para o consumo,
com tristeza ele lembra que banhava, lavava, cozinhava e bebia do rio, hoje só
dá pra lavar, banhar e algumas vezes ainda dá uma coceirinha, mas ele não deixa
o banho de rio. Cozinhar e beber aquela água não dá mais.
Em sua roça, Sr. Juvenal plantava as mesmas
coisas que tem ao redor de sua casa, além do feijão e mandioca, que são as
plantações dominantes. O feijão e a farinha, feita da mandioca, depois de
retirada a parte do consumo familiar, ele vendia e o resultado dessa venda
servia para cobrir as necessidades que a natureza não lhe oferecia.
Nato contador de histórias, Sr.
Juvenal desperta atenção dos mais novos, principalmente das crianças, mas há
muitos adultos que lhe visitam, especialmente para ouvir os seus relatos sobre
o rio, dentre esses adultos estão doutores, professores, ambientalistas e
representantes de órgãos preocupados com a natureza e principalmente com o rio
que Sr. Juvenal conhece bem, recebe muitas visitas de poetas, compositores e
escritores interessados nas suas histórias, além de vários convites de
diretores de escolas, para contar suas histórias aos alunos da rede municipal
de ensino de sua cidade. Com muita inteligência ele sempre finaliza as
conversas dizendo: ¨Estou triste, muito triste, o rio chora, a respiração dele tá
fraca, tão fraca que não ouço mais¨, e sempre que fala isso, uma lágrima desce
em seu rosto, demonstrando a intimidade, o apreço e a gratidão dele para com o
rio.
Sr. Juvenal conta que, por muitos
anos, fez roça à beira do rio, a chamada vazante, mas, com o tempo, percebeu
que sua roça prejudicava as margens do rio. Sempre muito observador do
comportamento do rio, certo dia quando em sua rotina subia o rio, remando,
percebeu que seu remo por três vezes tocou em algo, como se fosse o fundo do
mesmo, parou a canoa, com a vara que usava para impulsioná-la, quando cansava
do remo, pois a vara permitia ficar de pé, tocou
o fundo do rio e tomou grande susto quando desceu e percebeu que a água passava
um pouco de sua cintura. O local ficava próximo à sua vazante e, tanto abaixo
quanto acima da sua, havia outras vazantes. Nesse dia não trabalhou, passou o
dia inteiro pensando no rio, na possibilidade dele vir a secar e tomou a
decisão de não fazer mais roça à beira do rio. Homem inteligente, Sr. Juvenal,
percebeu que o rio perdia profundidade em virtude da terra que descia de suas
laterais no período chuvoso, justamente nos locais onde ele e seus amigos
retiravam as plantas e árvores nativas para fazerem suas plantações. Logo
percebeu também que precisaria avisar aos vizinhos e a todos que praticavam
aquele tipo de agricultura.
Sr. Juvenal estava decidido, naquele
ano seria sua última vazante, depois da colheita replantaria as árvores e
plantas nativas da beira do rio que ele, por muitos anos, de forma inocente,
ajudou a desmatar e estava aos poucos matando o rio. Além disso, precisava
encontrar uma forma de convencer seus amigos, vizinhos e até os desconhecidos
que usavam a beira do rio para fazer plantações, precisava fazer os amigos
tomarem consciência de que se continuassem com aquele tipo de agricultura o rio
iria morrer, sabia que era uma missão difícil, mas, estava decidido a fazer sua
parte.
Depois da colheita, organizou o
terreno, fez uma boa limpeza, esperou um tempo para que a terra pudesse
descansar, até disso Sr. Juvenal entendia e, depois de escolher umas mudas bem
saudáveis de plantas típicas da beira do rio, começou a replantar aquela parte
do rio, na esperança de que voltasse a ter o seu aspecto de antes, a sua
aparência natural. Além das mudas, coletou também algumas sementes e semeou o
terreno por inteiro, se as mudas não florescessem as sementes iriam dar a
garantia, se as mudas pegassem e as sementes germinassem, melhor ainda, restava
agora esperar que a natureza fizesse a parte dela.
Depois de feito todo o trabalho para
a recuperação da área que havia desmatado, Sr. Juvenal parecia aliviado,
consciência mais tranquila, porém, tranquilidade só teria mesmo depois de ver
aquela área como era antes e sabia que iria durar alguns anos, mas, precisava
fazer um trabalho maior, tinha que tentar recuperar as outras partes e isso não
dependia somente dele. Pensou várias formas de como faria o trabalho para
conscientizar os parceiros de vazante, não séria fácil porque dali tiravam o
sustento de suas famílias, portanto, tinha que encontrar uma forma de
convencê-los, afinal de contas o rio era a principal fonte de alimentação.
Chegou à conclusão que eles teriam que sentir o problema assim como ele, era a
saída. Uma vez por mês, acontecia uma missa na região onde morava, lá se
encontravam todas as famílias e depois da missa ficavam por algum tempo a
conversar e Sr. Juvenal decidiu que aproveitaria aquele dia para convidar seus
amigos a fazerem uma pescaria. Era de costume a pescaria coletiva, os homens
saíam para a pesca no sábado à noite e no domingo todas as famílias se
encontravam na casa de quem havia feito o convite, para um grande almoço e
divisão dos peixes, era uma forma de integração da comunidade. Assim fez e, na
noite da pescaria, colocou dois amigos para remarem justamente no local onde o
rio estava ficando raso. Quando tocaram com o remo no fundo do rio o susto foi
imediato. Sr. Juvenal aproveitou e mandando parar, pediu aos amigos que
descessem da canoa e, quando fizeram isso o susto foi igual ao de Sr. Juvenal
quando, pela primeira vez, se viu diante daquela situação. Disse aos amigos que
aquela pescaria era justamente para ele mostrar o que estava acontecendo com o
rio. ”O rio está secando e temos uma parcela de culpa, nós que fazemos vazantes
estamos contribuindo para a exterminação do rio, aqui está raso porque a areia
está descendo justamente dos lugares onde retiramos as árvores e plantas para
fazer nossas vazantes, se continuar assim em pouco tempo perderemos o rio,
nossos netos sofrerão as consequências, o rio é nossa vida, é nosso sustento, é
nossa fonte de alimentação, não podemos nos dar o direito de tirar o direito
das futuras gerações sentirem o prazer de um banho, de comer um peixe, de
navegar, de apreciar as belezas e maravilhas que este rio oferece”. Depois de
uma longa conversa, ali mesmo com água acima da cintura, coisa rara até aquele
dia, onde os amigos ouviam as palavras verdadeiras e convincentes de Sr.
Juvenal, continuaram a pescaria, combinando que no almoço do dia seguinte
tratariam do assunto. A pescaria foi farta, muitos peixes, principalmente Piau,
Pescada, Mandi, Mandubé, Cascudo, Viola, Matrinxã, Curimatã, Voador, Tubí,
Bagre, entre outros. Quando retornaram pela manhã, os familiares dos pescadores
estavam todos na casa do Sr. Juvenal, já estavam acostumados com a fartura de
peixes, mas, sempre era momento de muita euforia quando chegavam das fartas
pescarias. Todas as mulheres e seus filhos tratavam os peixes juntos, enquanto
isso, depois de terem trocado de roupas, tomado café, Sr. Juvenal chamou os
amigos para a conversa sobre o rio. Disse aos amigos que estava preocupado com
o rio, eles precisavam fazer alguma coisa, caso contrário toda aquela fartura
em pouco tempo se acabaria, o rio estava ficando mais raso e um dos motivos era
o tipo de agricultura que eles praticavam, quando limpavam a beira do rio para
plantar, retiravam as plantas e árvores que serviam de proteção que evitava a
erosão do terreno e, sem as raízes que faziam o trabalho de sustentação, a
terra descia para o leito do rio. Profundo conhecedor do rio, experiência
adquirida na convivência diária com o mesmo, Sr. Juvenal, no intuito de
convencer os amigos, buscava todas as formas possíveis de fazê-los acreditar
que ele estava certo. “Nosso rio é um rio onde sua base, na maior parte, é de
laje e está se transformando em um rio de areia, se continuar assim será o fim
e a nossa terceira ou quarta geração ao invés de andarem de canoa sobre as
águas, andarão de carro em uma estrada feita sobre o leito onde um dia existiu
um rio”. Todos concordaram e fizeram um acordo de que aquele seria o último ano
que fariam roça na beira do rio. Um dos amigos perguntou a Sr. Juvenal sobre os
outros agricultores que praticavam o mesmo tipo de agricultura rio acima e rio
abaixo. Sr. Juvenal, meio entristecido, respondeu dizendo que não podiam fazer
nada a não ser esperar que aquela mesma consciência despertada neles,
despertasse nos demais, deixou claro que estavam fazendo a parte deles, que os
demais a fizessem também, afinal de contas ele não tinha como viajar todo o rio
buscando emitir esse alerta, só restava colocar nas mãos de Deus, mas que iria
conversar com o padre, já que ele andava em outras duas cidades e que poderia iniciar uma campanha de
conscientização nas vizinhas Cidades de Codó e Timbiras, além do mais ele
poderia conversar com os padres das outras cidade que ficavam às margens do
rio.
Quando conversaram com o padre, ele
ficou encantado com a visão dos pescadores e assumiu o compromisso de divulgar
aquela preocupação dos amigos, também sabia que não seria fácil, mas, faria a
parte dele, inclusive decidiu que no ano seguinte usaria como tema da festa da
padroeira, o rio.
Para alegria de Sr. Juvenal, no ano
seguinte ninguém fez roça na beira do rio, as mudas que plantara estavam muito
robustas e as sementes haviam germinado. Seus amigos cumpriram o trato,
prepararam o terreno, plantaram as mudas e sementes.
Os anos se passaram, e com a chegada
do progresso, Sr. Juvenal, com tristeza, chora ao ver o rio, a cada dia, se
afogando em suas próprias águas, restando como consolo em sua memória, aquele
rio robusto, saudável e com saudade não lhe resta alternativa: contar as
histórias do rio.
SR. JUVENAL E O
CABEÇA DE CUIA
Nas histórias que Sr. Juvenal conta,
muitas crianças gostam de ouvir a do Cabeça de Cuia. Conta que ele ataca as
mulheres grávidas para ficar com os bebês, além de crianças desacompanhadas,
mas, diz a lenda, que só leva crianças pagãs, ou seja, que não são batizadas.
Cabeça de Cuia é também um protetor do
rio e leva as crianças para transformá-las, através de um encantamento, em
Bagres, peixe poderoso e soldados a serviço da proteção do rio, conta a lenda
também que os Bagres encantados jamais são pescados e que nas noites sem lua é
possível ouvir o choro de criança no rio, esse choro representa o choro das
crianças raptadas pelo Cabeça de Cuia. Seus ataques são sempre no entardecer,
às seis horas da tarde, mulher grávida, sozinha à beira do rio, é fatal, Cabeça
de Cuia tem uma espécie de encantamento que paralisa as mulheres e ele as
arrastava para o fundo do rio. Ninguém nunca tinha visto o Cabeça de Cuia de
corpo inteiro, só se via aquela espécie de cuia emborcada deslizando em uma
velocidade surpreendente sobre o rio, mas Sr. Juvenal conta que teve algumas
batalhas com ele, era uma espécie de homem com a cabeça sem cabelos, em forma
de cuia (utensílio feito pelo caboclo nordestino utilizando a cabaça cortada ao
meio e serve para colocar alimentos e beber água entre outras utilidades),
rosto coberto de escamas, um metro e cinquenta no máximo e tinha o poder de se
transformar em um Bagre, uma espécie de peixe da água doce parecido com o
tubarão.
Certo dia, Sr. Juvenal descia o rio
deixando que sua canoa deslizasse sobre ele sem remar, só com a força da
correnteza, como sempre fazia. Pelo reflexo do sol se escondendo confirmou a
hora: seis da tarde. Próximo a uma das curvas do rio ouviu um grito feminino,
seu pensamento foi certinho no Cabeça de Cuia e sabia que ele, o Cabeça de
Cuia, tinha medo de remo com uma cruz, por isso tinha uma cruz em seu remo.
Pegou seu remo, braçadas rápidas e logo se confirmou o que ele pensava, era o
Cabeça de Cuia atacando uma gestante. Ele estava fora d’água, com a mulher
dominada e arrastando ela pra dentro do rio. Sr. Juvenal, homem corajoso,
jamais imaginou um encontro daqueles, conhecia muita história do Cabeça de
Cuia, seu pai lhe contava muitas quando era criança mas, achava que era
invenção de seu pai para que ele não fosse sozinho para a beira do rio, com um
arrepio forte no corpo encostou para defender a mulher. O Cabeça de Cuia estava
tão distraído que nem percebeu sua chegada, uma remada do lado da cruz, no meio
das costas do bicho foi o suficiente, ele largou a mulher e correu para o rio,
já estava escurecendo, mas, ainda deu para Sr. Juvenal pegar alguns detalhes do
homem-peixe: cabeça em forma de cuia, rosto coberto de escamas, medindo um
metro e meio, quatro nadadeiras, duas nos braços e duas nas pernas.
Depois daquele dia Sr. Juvenal teve
outros encontros com Cabeça de Cuia, em virtude de ele ter salvado a mulher, o
bicho lhe perseguiu várias vezes. Certa vez, quando descia o rio, resolveu dar
uns lances com sua tarrafa, quando armou a tarrafa, do seu lado direito, a água
se avolumou um pouco acima do nível do rio, formou uma espécie de redemoinho
que, se ele não fosse um bom canoeiro, teria virado sua canoa. Sr. Juvenal,
experiente, logo percebeu que aquilo não era natural, lembrou da inimizade
feita com Cabeça de Cuia e tratou logo de sair dali, foi para casa e assim teve
muito encontros com o encantado até que em sonho, foi revelado a Sr. Juvenal
que ele teria que fazer uma cruz na proa de sua canoa, para que o Cabeça de
Cuia deixasse ele em paz, assim fez e nunca mais foi perturbado por ele.
SR. JUVENAL E O
CAVALO BRANCO SOBRE O RIO
Com uma riqueza grande de detalhes,
nosso pescador conta que certa noite descia o rio quando foi surpreendido por uma
visão fenomenal, algo que jamais imaginara ver ao longo de sua vida, Sr.
Juvenal já não se assustava mais com as traquinagens que o rio lhe aprontava,
todo dia estava preparado para uma nova e, com a coragem de poucos, ele
enfrentava na maior tranquilidade qualquer situação. Por mais adversa que fosse
a sua fé em Deus, superava todos os medos e perigos que a vida pudesse lhe
oferecer. As experiências vividas e contadas por Sr. Juvenal são tão reais que
nenhum outro pescador se arrisca a ir sozinho à noite para o rio, só ele faz
isso. Brincando com os amigos e visitantes, orgulhoso da sua fé e coragem,
batendo no peito, ele sempre diz: “pescar sozinho à noite nesse rio, só o
Juvenalzinho aquí”.
Naquele final de tarde, início de
noite, após um cansativo dia de trabalho, nosso pescador, como fazia todos os
dias, deixava o rio levar sua canoa sem dar um toque com o remo na água,
parecia que a canoa e o rio já conheciam o caminho, se fosse mecânica, poderia
se dizer que a canoa estava no piloto automático, programada para atracar no
seu porto. De repente, Sr. Juvenal percebeu um vento diferente lhe tocar, era
tão experiente, tão conhecedor daquele espaço, que sabia até quando o vento
soprava diferente, conhecia quando ele soprava mais quente ou mais frio que o
natural. Um arrepio forte tomou conta de seu corpo e logo percebeu que ali
vinha coisa, mas não sentiu um pouco de medo. Há uns duzentos metros à sua
frente percebeu uma claridade enorme quando surgiu sobre as águas do rio um
imenso cavalo branco. De uma beleza inigualável, o cavalo empinava para o alto
e ficava só nas duas patas traseiras. O lindo cavalo corria por sobre o rio
dando rodopios e relinchos, com uma felicidade que Sr. Juvenal jamais tinha
visto. Aquela visão permaneceu por uns cinco minutos à sua frente e sempre
mantendo a mesma distância. Aquela época era início de plantação e naquele ano
foi a melhor colheita que Sr. Juvenal já fizera em toda sua vida.
Uma vez por ano ele tinha aquela
linda visão, no ano que não aparecia a colheita era fraca, era ano de pouca
chuva, escassez até de peixe. Todos ao longo do rio conheciam a história de um
lindo cavalo branco que aparecia para um pescador, mas, nenhum outro tinha o
privilégio daquela visão, exceto Sr. Juvenal.
A história do cavalo branco era tão bonita que
D. Francisca, esposa de Juvenal, por várias vezes insistiu para também ver, mas
ele achava que a presença dela poderia não ser boa, havia um sentimento forte
que lhe dizia isso. Por tanta insistência e pelo grande amor que sentia por
ela, Sr. Juvenal resolveu atender aquele pedido, como ele sentia no seu íntimo
o dia da aparição, naquele ano decidira que atenderia ao pedido de sua mulher.
No dia certo chamou a esposa cedo e a levou consigo. À noite quando retornavam
aconteceu a aparição, D. Francisca assistiu tudo maravilhada, era a única
pessoa além do esposo a ver aquela maravilha, mas, naquela noite, Sr. Juvenal
percebeu um comportamento diferente no cavalo. Antes de se retirar, o cavalo de
costas para a canoa, deu uma olhada pra traz e com a pata traseira esquerda deu
uma espécie de coice na água, criando uma onda que quase vira a canoa. D.
Francisca estava tão encantada que nem percebeu, mas, Sr. Juvenal logo teve a
certeza que não deveria ter feito aquilo. No dia seguinte Sr. Juvenal amanheceu
doente, o restante daquele ano não conseguiu mais trabalhar com uma dor no
braço direito, não tinha força pra nada. O ano seguinte o cavalo não apareceu e
foi de pouca chuva, seca, muita seca, de bom só que Sr. Juvenal recuperou sua
saúde. Foram dois anos de sofrimento até a nova aparição do cavalo branco, só
não passaram fome porque era um homem prevenido, aprendeu com seu pai que
deveria sempre guardar um pouco do que tinha para as horas mais difíceis.
Sr. Juvenal entendeu o recado, os
segredos dele e do rio só podiam ser contados e não mostrados, ninguém mais
podia participar daquela intimidade, a não ser que o destino quisesse assim,
por isso, sempre mantinha o respeito grande por aquele lugar, para ele considerado
sagrado
A LUZ QUE
ANDAVA SOBRE O RIO
Conta Sr. Juvenal que certo dia,
início do mês de Novembro, véspera de Finados, ele fazia uma pescaria sozinho.
Já passava das oito horas da noite e ele ainda descia o rio em sua canoa. Noite
escura, precisava pegar uns peixes a mais porque no dia seguinte viriam alguns
familiares à sua casa, mas a pescaria estava fraca. Ele estava à margem
esquerda do rio e paralelo a ele, na margem direita, uma luz seguia no mesmo
sentido que ele, uma espécie de luz de lamparina ou de vela e Sr. Juvenal
imaginando que fosse outro colega pescador, só que estava estranhando porque o
parceiro ainda não havia dado o sinal de cumprimento como eles sempre faziam
quando estavam pescando, se cumprimentavam através de uma espécie de assovio,
mas, ele nunca assoviava primeiro, sempre esperava para poder responder,
conhecia os segredos e os mistérios do rio. Também não se preocupou muito
porque era tão íntimo do rio que não usava qualquer tipo de iluminação, nem
lanterna, por mais escura que a noite tivesse. Então imaginou que o outro
pescador não estava lhe vendo. A luz seguia lá, sempre paralela, Sr. Juvenal
jogando sua tarrafa e nada de peixe. Estranhou, nunca tinha acontecido aquilo e
começou a desconfiar daquela luz. Parou um pouco, olhou fixamente pra ela,
sentiu um forte arrepio no corpo, fez o sinal da cruz e percebendo que aquilo
era o rio lhe aprontando mais uma, se movimentou para a parte de trás de sua
canoa, ele sempre pescava na parte da frente, pegou o remo e na primeira remada
tomou um susto, ficou paralisado. Aquela luz atravessou o rio em uma velocidade
que se ela tivesse em uma canoa e dez homens remando, não conseguiriam fazer
aquilo, foi muito rápido. A luz parou dez metros à sua frente e desceu o rio na
mesma velocidade que atravessara, até sumir da vista de Sr. Juvenal. Recuperado
do susto, começou a remar em direção à sua casa, não estava muito distante, mas
antes que pudesse chegar aos fundos de sua residência, onde deixava a canoa
atracada, viu a luz novamente, Sr Juvenal vinha bem devagar, conservando sempre
a margem esquerda, pois esse era o lado que costumava descer o rio já que era o
mesmo lado que ficava sua residência. Viu aquela luz passar ao seu lado, pelo
meio do rio, lentamente como se o tivesse observando. O vento soprava forte, e
ele conta que já sem o menor medo olhava fixamente, com admiração, aquela luz
que se fosse de uma vela ou lamparina, não poderia estar acesa. Como a luz
ficava uns quinze centímetros acima do rio, fixou seu olhar entre ela e as
águas para tentar ver o que lhe sustentava, mas, apesar da escuridão, pôde
constatar que não havia nada e que o rio era uma espécie de combustível que
mantinha aquela luz acesa. A luz subiu devagar até sumir na curva do rio e
nessa noite passou mais uma vez ao lado dele, só que subindo novamente, e Sr.
Juvenal conta que não viu descer, passou por ele e com sua chama forte. Conta
Sr. Juvenal que, essa luz, foi uma das poucas visões que ele teve do rio e que
outros amigos puderam ver, mas nenhum deles presenciou tão forte quanto
ele.
Muitos deles na primeira aparição da luz
abandonaram as canoas à beira do rio e só voltaram para buscar à luz do dia
seguinte e, da aparição daquela luz pra frente, os poucos que se arriscavam
pescar sozinho à noite, não foram mais, só iam com um ou mais companheiros.
Dessa luz, com a sabedoria e conhecimento de Sr. Juvenal, ficou uma lição até
os dias de hoje para os pescadores, no dia que aparecer uma luz sobre o rio, o
pescador pode ir embora, nessa noite não pega peixe e se insistir pode ficar
assombrado. Também aprendeu que, quase todas as aparições do rio, são do bem,
geralmente buscam a proteção do mesmo ou dos peixes, aprendeu que a luz aparece
onde há cardumes de peixes em extinção.
O PESCADOR MISTERIOSO
Certo dia, já estava anoitecendo,
D. Francisca preparava um arroz sem qualquer mistura, só água e sal, para comer
com um pouco de carne cozida que sobrara do almoço. Sr. Juvenal quando sentiu o
cheiro do arroz, arrozinho novo, daquele que fica meio papado, foi até a
cozinha e quando abriu a panela disse à esposa que aquele arroz ficava mais
gostoso com um caldinho de peixe e resolveu pegar uns peixinhos para fazer um
caldo, ele não gosta muito de carne e principalmente no jantar, diz que é
comida muito pesada, quando come carne à noite sempre tem pesadelos e seus
pesadelos são com o rio secando, canoa virando ou que está morrendo afogado,
são coisas que nem gosta de imaginar. Pegou sua tarrafa, desceu os degraus de
uma espécie de escada que tinha feito na laje à beira do rio, haja vista sua
casa ficar bem próxima do mesmo, mas, em um nível muito alto em relação ao rio.
Sua casa ficava, no máximo, a uns trinta metros da margem do rio, incluindo aí
a descida em forma de escada, toda a margem tanto para a esquerda como para a
direita da escada, algo em torno de trinta metros para cada lado é formada por
uma parede de laje com uns cinco metros de altura e o espaço para andar sem
entrar na água é de apenas um metro, ou seja, é um local onde se torna
impossível uma pessoa passar pela outra sem ser percebida.
Naquele local, Sr. Juvenal podia
pescar à vontade sempre que queria comer um peixe fresquinho, ou seja, pescado
na hora. Ali só ele pescava, ficava em frente a um remanso e por ser uma área
de laje e em uma das curvas do rio, aquele seu espaço começava e terminava
dentro da água, parecia que a natureza tinha preparado aquele lugar, que
durante o inverno ficava submerso, especialmente para ele, claro que nosso
herói tinha dado o seu toque especial, já que era muito criativo e jeitoso com
as coisas, principalmente do rio. Por ser um local de laje, ali se pegava muito
Cascudo, Mandi e Viola, além das Matrinxans e Voadores que costumam subir o rio
em cardumes ao anoitecer. Sr. Juvenal desceu as escadas e quando preparou a
tarrafa para dar o primeiro lance tomou um grande susto quando alguém do seu
lado esquerdo jogou uma tarrafa, escutou o som daquela tarrafa na água e pôde
ver o rio se abrindo fazendo o formato da tarrafa, e percebeu ser um bom
pescador, porque a tarrafa era grande e foi bem jogada. A lua estava bonita,
mas, naquele local a sombra das árvores formava uma grande escuridão, tornando
possível ver só a água e quase impossível ver quem estava à beira do rio, só se
tivesse a um metro de distância dava para perceber a presença. Já que não tinha
visto nenhuma canoa, Sr. Juvenal passou a se perguntar como aquele pescador
havia chegado ali sem passar pela sua casa. Mas, resolveu esquecer, estava mais
preocupado com o seu caldinho de piaba como costumava chamar um caldo à base de
limão e cheiro verde. Jogou sua tarrafa e quando puxava da água, se assustou
mais ainda quando o outro pescador jogou a tarrafa dele, só que dessa vez do
seu lado direito. Era impossível aquela pessoa ter passado por ele sem ele ter
percebido, a lateral era muito estreita, apenas um metro. Sentiu um pouco de
arrepio, puxou sua tarrafa, com o toque das mãos percebeu que havia peixe
suficiente para sua janta. Enrolou a tarrafa e antes de subir a escadaria
perguntou em voz alta ao outro pescador se a pescaria estava boa. Foi um
silêncio profundo e não obteve resposta. Subiu as escadas, fez uma tocha e
voltou com um dos filhos, andaram toda a margem e não viram ninguém e nem
canoa. Sr. Juvenal pensou consigo: mais uma que o rio me apronta.
A MULHER DE
BRANCO
Das histórias que Sr. Juvenal
conta, a que mais lhe impressiona é a aparição de uma mulher de branco à beira
do rio, ele mesmo nunca viu ou se encontrou com a tal mulher de branco, mas,
conta que ouviu muitos relatos de pessoas que tiveram algum parente que teve a
visão dela. O último pescador que havia se encontrado com ela, conta Sr.
Juvenal, já havia falecido, fazia quase dez anos e, que ela sempre aparecia com
frequência no início de anos que têm a terminação cinco e sempre às
sextas-feiras à meia noite. Os homens que se encontravam com ela, dificilmente
voltavam pra casa e, sempre que desaparecia um pescador em dia de sexta-feira e
em ano com terminação cinco, todos já sabiam que era a mulher de branco que o
tinha levado, por isso, nesses anos, Sr. Juvenal sempre voltava antes de
escurecer, nos dias de sexta-feira, às vezes queria duvidar um pouco da
história, mas, como conhecia alguns mistérios do rio, preferia não arriscar. A
mãe de Sr. Juvenal contou a ele sobre a mulher de branco, o pai dela teve a
infelicidade de ter esse encontro e escapou, mas, não conseguiu contar a
história porque depois desse dia, ele não falou mais. Sua mãe contou-lhe que
alguns ainda conseguiram entender o que o pai dela tentava contar sobre o
encontro, dizia ser uma mulher muito bonita, vestida de branco neve e quando se
aproximavam da boca dela saía fogo. Por isso, Sr. Juvenal recomenda: ano com a
terminação de número cinco, sexta-feira, meia noite, não esteja à beira do rio.
A CANOA COM UMA
VELA
Quem visita Sr. Juvenal,
geralmente disponível para este tipo de conversa, nos finais de tarde das
sextas-feiras, quando dá por conta de si já passa da meia-noite, geralmente
quem vai sozinho acaba ficando até o amanhecer porque as histórias da forma
como são contadas, fazem com que as pessoas que ouvem se envolvam de tal forma
que dá medo e tanto pra esquerda quanto pra direita da casa de Sr. Juvenal
existem cemitérios. É impressionante como ele não se cansa de contar as
histórias, entra pela noite e não sente sono, parece que ele sente a obrigação
de repassar aqueles conhecimentos para que não fiquem esquecidos, é como se ele
tivesse fazendo uma previsão de que num futuro próximo, aquilo não mais existirá
e sente a necessidade de manter vivo na memória dos mais novos, tudo que a
natureza lhe oferece para que um dia as futuras gerações possam pelo menos ter
o direito de imaginar como foi aquele mundo à sua volta.
Conta Sr. Juvenal, que certa noite
descia o rio quando viu ao longe uma luz subindo em uma velocidade constante
pelo meio do rio. Com a velocidade que a luz se aproximava dele, ele logo
imaginou que ali viria coisa, vinha muito rápido, uma canoa não caberia
remadores suficientes para impor tamanha velocidade, aquilo que imaginou ser
uma canoa, ela jamais desenvolveria uma velocidade daquela e com o vento que
soprava, a luz que ele logo identificou ser uma vela, jamais ficaria acesa. Um
sinal da santa cruz, uma oração de proteção e a vela já estavam passando por
ele. Na dúvida se olhava ou não, resolveu olhar. Não havia nada de anormal que
acontecesse naquele rio que ele não fosse investigar, por isso evitava o rio
nas sextas-feiras, à meia noite, principalmente nos anos de terminação cinco,
temia encontrar a mulher de branco porque tinha certeza que não fugiria dela.
Um arrepio no corpo, afinal de contas Sr. Juvenal sabia que sempre que você
passa por algo sobrenatural, não tem jeito pra não arrepiar, isso é um aviso
natural e a canoa emparelha com ele. Da mesma forma surpreendente que
desempenhava aquela velocidade subindo o rio, como se tivesse um motor potente,
a canoa misteriosa com uma vela na frente, parou como se tivesse um freio dos
mais modernos de nosso tempo, e isso em cima da água. Sentiu como se o
passageiro ou os passageiros daquela embarcação tivessem lhe observando, por
mais ou menos trinta segundos que pareceram vinte quatro horas, Sr. Juvenal
ficou de frente com aquela visão e, na mesma velocidade que vinha, retirou dali
sem balançar a água, até sumir na curva do rio. Quando Sr. Juvenal atracou sua
canoa nos fundos de sua casa, veio uma vontade grande de dar uma tarrafeada.
Pegou sua tarrafa, já cansado, fatigado pela luta diária, jogou a tarrafa e
pegou uma linda Pescada, pensou consigo que aquela visão era do bem e desejou
vê-la outras vezes. E sempre que encontrava com ela, era a certeza de pescar um
belo peixe.
O GRITO E O
CHORO DE UMA CRIANÇA
Sr. Juvenal, homem do rio,
respeitava o rio como uma criança educada respeita um idoso, uma gratidão
imensa pelo rio que lhe dava a oportunidade de viver e o rio lhe entendia,
parece que ambos sabiam da importância de um para o outro. Um homem de muitas
histórias, entre elas, conta que na mesma noite, quando pescava com alguns
parentes, que moravam na capital e que muitas vezes duvidavam dos seus contos,
das suas visões, dos seus encontros sobrenaturais, ouviram um grito e um choro
de criança.
Estava ele, o irmão mais novo e
dois sobrinhos pescando na beira do rio, um pouco distante de sua casa, quando
ouviram um assovio, como se fosse de uma pessoa querendo se comunicar na
escuridão, só que era do outro lado do rio. Um dos seus sobrinhos disse que
iria responder e Sr. Juvenal pediu pra que não respondesse. E os assovios
continuavam. Seu sobrinho insistindo em responder e Sr. Juvenal dizendo que
não. Até que em dado momento o sobrinho respondeu assoviando de volta. Estavam
todos à beira do rio, do lado de fora da canoa, Sr. Juvenal recolheu sua tarrafa
e o remo e mandou todos irem pra canoa, rápido, repreendendo seu sobrinho que
não era pra ele ter respondido. Seus parentes quiseram duvidar, quando a água
deu uma sacudida tão forte que quase joga a canoa no seco, foi como se algo
grande, muito grande tivesse entrado no rio. Todos correram pra canoa e quando
estavam parando a canoa, no fundo da casa de Sr. Juvenal, o assovio que estava
do outro lado do rio, chamou no lugar onde eles estavam anteriormente. Quando
desceram da canoa e estavam atracando a mesma, ouviram um choro de criança do
outro lado do rio. Sr. Juvenal perguntou se alguém queria ir com ele buscar
aquela criança que estava chorando. Todos subiram as escadas que davam acesso à
casa de Sr. Juvenal o mais rápido que puderam, quase passando uns por cima dos
outros. Quando Sr. Juvenal chegou, eles assombrados, perguntaram o que era
aquilo. Sr. Juvenal disse que o assovio ele não sabia o que era só sabia que
não era coisa boa, por isso nunca respondia assovios desconhecidos, já que ele
conhecia o assovio dos outros pescadores, e que o choro de criança representa o
choro das mães que têm seus filhos raptados pelo Cabeça de Cuia.
No outro dia, cedo, seus parentes
se despediram e foram embora, não conseguiram dormir um minuto durante a noite
e nunca mais duvidaram das histórias contadas por Sr. Juvenal que, sempre
encerra as suas conversas com a história do Assovio e do Choro de Criança
acompanhada de um conselho: se você estiver no rio, pescando, banhando ou
fazendo qualquer outra coisa e sentir cheiro de peixe, pode sair da água, é a
Sucuri preparando pra dar o bote.
O sal do mar
enxuga
As lágrimas do
rio que chora
Uma gota sequer
vai voltar
E o homem só
ignora
Tão perene vai
descendo
De Colinas para
o mar
E eu observando
Da minha terra
Coroatá
Ainda dá tempo
Algo ainda
podemos fazer
Escute este
grito de alerta
É bom pra mim e
pra você
Ah meu
Itapecuru
Como queria ter
o poder
De ressuscitar
a vida
De fazer
renascer
Mas só a Deus
pertence
O dom de ressuscitar
Dar a vida só
Ele
Pode esse
milagre realizar
Mas ao homem
Deus deixou
O poder de
recuperar
Para isso basta
na consciência
Esse sentimento
despertar
Desperta, homem
desperta
Desperta e
vamos escutar
O grito do rio
que chora
Querendo à vida
voltar.
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